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sábado, 20 de março de 2010

Até ao Porto


“Sentei-me na carruagem uns minutos antes da partida, folheando um jornal diário e olhando a manhã azul que se estendia sobre a gare do Oriente.
De repente, a minha atenção é captada por uma mulher que se senta num dos lugares opostos do corredor, num banco virado para mim. Teria cerca de quarenta anos, calculei, enquanto a via arrumar as suas coisas e sentar-se. Era uma mulher belíssima: cabelo longo ruivo e bonito, roupas sofisticadas, uns olhos esverdeados sob os óculos escuros que acabava de retirar.
Notavam-se aqui e ali pequenos excessos de moda, embora toleráveis a uma mulher bonita que as usava com o mesmo bom gosto com que usava o seu encanto natural.
Quando era miúdo, um dos muitos filmes que me marcou foi o Shangai Express, com Marlène Dietrich, um filme dos anos trinta de Josef von Sternberg. Esse filme criou para sempre em mim, no início da adolescência, o mito da mulher misteriosa. A mulher misteriosa que viaja sozinha num comboio, a sua beleza enigmática e o destino desconhecido para o qual se dirige. Suponho que mais tarde alarguei este conceito a outros meios de transporte nos quais viajei, mas o comboio era a mística original.
Strangers on a train, de Hitchcock sempre foi para mim um dos mais bonitos títulos do cinema, a expressão desse enigmático ponto de encontro para viajar.
Cada uma das mulheres bonitas que recordo ter encontrado a viajar sozinha era encaixada num sonho romântico com formas de película a preto e branco, num recanto da minha imaginação. Só que esta mulher com quem viajei, fez cair esse mito que armazenara no meu íntimo desde a adolescência.
Mal o comboio saiu da gare do Oriente, pegou no seu telemóvel Nokia de linhas estranhas, um modelo que eu desconhecia, e começou a fazer chamada atrás de chamada.
Olá, saí há dois minutos. Assim foi a viagem até ao Porto.
Chamadas e mais chamadas, longos minutos de conversa frívola e irritante. Será que Shangai Lily, a personagem de Dietrich, e as outras mulheres solitárias com que viajei no grande écran, teriam pensamentos e conversas íntimas assim, apenas cerceadas pela inexistência de um meio de comunicação apropriado? Levantei-me e fui fumar um último cigarro, deixando aquela revoada de palavras para trás, junto com os mitos e os fantasmas do passado.”

 In: Asas de bobloleta

4 comentários:

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Meu querido amigo
Ainda bem que voltaste, já tinha saudades de viajar nos teus belos textos.

Beijinhos
Sonhadora

catwoman disse...

Meu amigo eu faço viajens bem mais curtas e é "o pão nosso de cada dia", também atendo o meu, se achar que é importante. Mas já se torna cansativo ouvir tanta vida, logo de manhã.Até já sei que a miúda loira que se senta imediatamente atás de mim se levanta às 6 em vez das 6.30 que podia para ir tra tar da sua Farm(ville) Bjs.

Moi disse...

Como sempre um belissimo texto, acompanhado de uma musica intemporal!
Se cada viagem na vida fosse sempre assim!...

Anônimo disse...

e como este momento deita por terra a construção da beleza... senti o teu texto como uma curta metragem, não sei porquê senti-o cinematográfico. Gostei. Às vezes o que se esconde sob um mistério é apenas o vazio...