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sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Puta sem nome


“Amar alguém que não possuímos ou amar um ser que perdemos é preservar na alma um segredo infinito, uma dor imensurável que só a nossa morte nos desvenda e tranquiliza!”

JC




Foi parida e engendrada num lago enlameado de ilusões e desde cedo que beijou a fome e afagou o desanimo.

Ela é bonita sem ser uma mulher pulcra na sua integridade. Possui uns olhos rasgados que parecem flutuar com o movimento ondulante do corpo. Igualmente dona de uns lábios carnudos exala a ânsia crua e a lava incandescente que inunda de forma esbraseada qualquer coração menos atrevido.

Prostituta de rua deambula pela cidade que ferve por entre os dentes das horas tardias.

Desfila numa ‘passerele’ de asfalto, sem nome, cor, ou aplausos.

Ensaia gestos, movimentos apelativos com as ancas bem torneadas e os seios hirtos. Os lábios cor de fogo corados de batom reles emanam um misto de prazer e náusea.

As esquinas que habita são abrigos armadilhados, consumidos pela escravidão e pelo medo. São as esquinas da rua dos dias que passam.

Ao longe, numa falsa timidez, tem no olhar as primaveras que não viveu. Há no ar um perfume, um desejo ou a memória de um sonho...

Acorda todas as manhãs num vazio sem amparo, numa solidão sem nome. Doce, quase humana, olha a tarde em busca de um milagre que não acontece.

A blusa transparente ondula, a minissaia convida...

Tem uma voz fraca, doces e densos, os olhos parecem húmidos. Espera impaciente em qualquer lugar a sombra dos seus pecados. Em algum lugar, a sua boca tece, ávida, o calor húmido e doce de alguém com hálito a mortalha barata.
Em algum lugar, o seu gemido cala o som de algumas traidoras consciências.

Em algum lugar, a sua dança extasiante, confunde o espaço e o tempo estagnados numa poça enlameada da uma vida deslustrada.

Em algum lugar, amor, paixão e sexo, não terão nenhum sentido.

Em algum lugar, será o imaginário de todos nunca imaginados. Luta sem tréguas uma batalha sangrenta pela paz do amanhã.

Mas, amanhã será o ontem esmagado, o rasto dos seus passos serão meras sombras no desalinho das emoções fugazes de uma hora. Galga os dias, afugenta as horas, abraça os instantes em despedidas com um corpo prostrado, com um rosto sem expressão.

Procura as marcas da sua presença e encontra somente fantasmas em agonia.

Cansada de amanhãs nascidos mortos, caminha na solidão sem nome, sem vida.

Hoje, mais do que ontem, sabe que ninguém escutará as suas súplicas. Vive paredes meias com a morte, sem ninguém que testemunhe a sua existência... Morre em cada lágrima o desespero do tempo... Resiste mais um instante, como quem ainda espera por alguém ou por alguma coisa...

Morre dentro de si a última memória daquilo que foi vida, morre dentro de si o último lugar onde acreditou em milagres...

Indiferente, a tarde cai, igual à última tarde... Sente que a sua solidão é o seu pior carrasco...

A noite chega, escura, quase morta... Contínua só, absolutamente só... Não sabe se está louca ou lúcida... Se ébria ou sóbria, se morta ou viva. Esquece-se dela, do seu nome...

Sabe que ninguém se lembrará de quem foi... Será simplesmente a puta do bairro, a tal que não tem ninguém, a tal que chora todas as noites...

Será apenas mais uma mulher sem história... Uma puta sem nome…

O lusco-fusco tomou já conta da cidade, as cores e as faces, são apenas silhuetas anónimas, sem alma e coração.

A rua estreita fica mais povoada, sombras atravessando sombras...

Acabou de negociar as entranhas. Negou mais uma vez sentir-se amada.

 

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Saudade



"Amor não é duas pessoas de mão dada; é a vida de mão dada com a morte, a alegria de mão dada com a tristeza, o bem de mão dada com o mal"

João Fernandes in ‘Povo que lavas no Rio’


Desperto geralmente sem mim
Defronte do espelho novo contemplo uma velha lembrança
Já não me sorri... Nem sequer lacrimeja por mim
Fixo, apenas as marcas indeléveis do tempo
Já não é criança
A pulcritude de sua vivacidade está ofuscada pelas agruras passadas
Caminha taciturnamente em direcção a si mesma
Nos olhos o brilho triste, de um adeus, de uma despedida
Na boca o sorriso desfeito


Não é possível viver de memórias
O velho espelho coage-me a percorrer novos caminhos de significados
Um vazio incomensurável preenche o tom cinza dos meus dias
Dos meus encovados e bacentos olhos
É como se uma parte de mim tivesse sido enterrada sem dor, na arca do tempo
O espelho mostra e revela, o que ainda me resta
Falta-me a luz daqueles olhos que me acabrunhava
A voz que me arrancava do torpor que o tempo pariu
O toque que me queimava a pele quente de desejo
Cerro os meus olhos, cheiro o frio que me circunda, mas não me consigo sentir


Abro os olhos a medo
Já não consigo ver a cor das muralhas que me cercam o desgostoso coração
Perco-me nas partituras da música que já não faço.
São notas perdidas?
Pedaços de um sonho?
Vidas desfeitas?
A solidão enegrece os dias que me fogem célere num cavalo alado
O sangue estagna nas veias do meu corpo débil e enfermo

Tantos e intensos desejos que se perderam no atalho da felicidade




Caminhos díspares criaram um abismo que medrou dentro de dois corações
Recordo aquele entardecer frio e ardente de esperança
Hoje, aqui só e sem entender, as escolhas que fizemos, os passos que não demos
Às vezes enxugo a lágrima da despedida que não tivemos
Sei que nada é por acaso que tudo tem sempre um motivo
Sento-me no regaço da imaginação à espera de respostas que talvez nem existam
Ainda anseio por palavras que se esqueceram de mim


Além da velha imagem que vejo defronte do espelho novo
Há uma alma vagabunda que deambula em fantasia pelas ruelas estreitas do teu corpo
Um espírito que luta com o coração em chaga uma esgrima de amor sem fim
Num duelo permanente, amargurado, sem vencido ou vencedor


Agora, colecciono noites. Noites escuras, frias e tristes.
Enclausuradas em frascos da minha memória que visito invariavelmente nos dias mais tristes.
Apenas um frasco permanece vazio…
Junto noites em que oiço a chuva numa precursão ritmada sem som
Escolho uma ao acaso onde faço amor numa cama de sonhos


Deixo-me abraçar pelo frio que me invade a pele, me percorre as veias num arrepio de saudade
Oiço o silêncio do escuro e vejo o murmúrio da tua voz sempre mais distante
Apenas o latir de um cão perturba o meu choro abafado e compulsivo
Abro a janela do meu recanto de par em par
O balançar das folhas nas árvores faz-me meditar na incerteza da vida e na convicção da morte
Procuro aquele olhar penetrante e lascivo que caiava o azul do meu
Que tantas vezes disse tudo do nada que havia para dizer
O sorriso estridente que nos levava em sepulcro silêncio para um lugar mágico, só nosso
Onde não precisávamos ter receios
Éramos apenas nós mesmos, sem máscaras, sem medos
Seres inacabados na sua imperfeição que se achavam após uma longa e prolongada ausência!


O sonho ruiu, o meu, de mim, de ti, de nós. Desmoronou-se toda a magia, como se fosse de areia a desfazer-se na preamar
E eu, em que me transformei?
Em sombra, apenas uma sombra que deseja andar de mão dada com amor
Um espectro com a vida de mão dada com a morte
A alegria passou a andar de mão dada com a tristeza, o bem de mão dada com o mal.

E tu?


Cobre teu coração com um xaile negro que te aconchegue e proteja do frio e da solidão do amor


E Eu?


Eu deixo que a alma me leve sem destino para não mais ser encontrado a contar os dias que me resta





(Este texto foi inspirado nas dolorosas mas realistas palavras de João Fernandes)

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Porque murcha o girassol?


Nove e dez minutos da manhã. Valeu a pena ter fugido da cama bem cedo. A fragrância a iodo do mar faz-me sempre bem.
Entrei em casa bocejando sem parar. Doíam-me os maxilares. Sentei-me no sofá do canto e no canto do sofá. Acabrunhado. Sentia-me triste. Sei que podemos ficar desgostosos e feridos com as palavras mais cruéis. É natural!
Caminhar dias e dias numa estrada sem fim com dúvidas que nos atormentam sem limite, sem dó.
Gerar feridas abertas no nosso coração, que nos lançam para um sofrimento bárbaro. Mas, nada aniquila tanto por dentro, como uma grande desilusão.
E se esse desapontamento vem de alguém que nos ocupa um lugar no coração, é como se as árvores estivessem completamente despidas, o campo integralmente deserto, a música sem melodia, a palavras sem significado, o coração sem pinga de sangue.
Torna-se num lugar de memórias antigas, que mais não fazem do que obrigarem a lembrarmo-nos de que o nosso coração, no fundo, no fundo, só a nós pertence.
Lancei um olhar lânguido para o fundo da casa onde se encontrava a estante de pinho com livros em desaprumo. Deixei-me invadir por breves instantes num enternecimento de lágrimas inoportunas.
Por vezes não basta o que alguém nos diz. Por vezes não basta que alguém nos tente compreender. Que tente lutar... Que despeje nas nossas mãos mil palavras. Não basta tentar. Tentativas. Tentativas que não nos tocam o coração. Um gesto, um beijo ou simplesmente um abraço consegue tirar-nos os pés do chão e flutuar sem asas no espaço.
No meio da desordem dos livros, escolhi um ao acaso e mergulhei naquele mar de letras!
Após percorrer várias páginas deixei-me ficar encostado ao ponto de interrogação de um parágrafo do livro “Os íntimos” Inês Pedrosa.
Penso que nunca compreendi o verdadeiro mundo das mulheres. Por esse motivo fiquei a pensar naquilo que tinha acabado de ler.

“… Porque tem de haver uma razão para tudo? Que razão assiste ao despertar da paixão?
As mulheres exigem explicações, não suportam a natural irracionalidade da vida. Queixam-se da previsibilidade dos homens, da sua incapacidade para a surpresa – sempre os mesmos gestos, sempre o mesmo sofá, as mesmas rotinas, os mesmos restaurantes -, nunca compreendem a decadência do desejo, ou antes, o pânico da prisão. Um dia um homem acorda e sente-se preso por uma mulher amada. Isso não quer disser que tenha deixado de a amar, apenas que a ama agora de outra maneira. O sexo gasta-se. As mulheres parecem não perceber que o sexo se gasta muito depressa. Talvez sejam mais hábeis com a imaginação. Ou com a mentira. O corpo de uma mulher adapta-se à mentira, como a tudo. O corpo de um homem é verdadeiro como um hospital. Nunca mente. Por mais que queira, não mente. Não sabe.”…

O mundo será um lugar melhor no dia em que as mulheres perceberem que o romantismo não tem de ser um acto diário para ser verdadeiro!
Que entendam que existem infinitas formas de mostrar amor, romantismo, paixão e humildade.
Algumas mulheres não percebem como são lindas como os lírios do campo. Outras não atingem que quando nos olham é como uma perversa tentação, uma forma de provocação, qual efeito para a abelha que procura o pólen num enorme girassol.
Mas por vezes a escuridão que nos talha a alma ressaca campos inteiros de girassóis, que sem vida se ajoelham junto da terra, sem nenhum encanto, com as ramas pesadas de sono roçando a lama fria da terra.

O girassol, murcha e a abelha despega-se da debilitada flor e vai procurar outra, e outra…
 

quinta-feira, 1 de março de 2012

Talvez ainda te ame!



  " QUANDO O AMOR É SINCERO ELE VEM COM UM GRANDE AMIGO, E QUANDO A AMIZADE É CONCRETA ELA É CHEIA DE AMOR E CARINHO."
(Sheakespeare)

Em dias infindáveis amei-te loucamente. Durante intensos dias, amei-te mais do que a minha própria vida. Acredita que é verdadeiro o que te digo.
Hoje peço-te que aceites o que afirmo e que acredites nas minhas palavras jogadas nesta página escura, colorida com tinta de afeição, carregadas de ansiedade e frustração.
Ansiedade porque é o meu estado permanente. Frustração que é uma vivência de mim.
Estou extenuado de me acobardar dentro de quatro paredes, do corte das minhas asas, de morrer, simplesmente, quando tudo estiver acabado e eu nem sei o que tenho para acabar.
Reconheço que já não me amas. Embora julgues o contrário. O contrário de tudo.
Julgas que te amo só porque me deito contigo. És cega. Não distingues amor de intimidade e hábito?
Sabes o que é a crise dos sete anos? Nos já ladeámos três crises e vamos tentar ludibriar a quarta.
Ambos sabemos que quando o frio na barriga passa e o príncipe encantado se transforma num simples mortal a sensação de desgaste generalizado acaba por colocar o relacionamento nos pratos de uma simples balança.
Chegou o ponto em que nada mais existe para acrescentar um ao outro e a relação passa por nós preenchendo um tempo oco.
Mas amei…
Ainda te desejo porque te amei. Amei-te e criei em mim a ilusão que podia criar em ti o amor como se o amor se plantasse como quem planta uma orquídea selvagem e a vê crescer.
Mas o amor não é uma planta.
Também eu confundi. Misturei a realidade com os meus desejos.
Queria sentir a tua presença mesmo na tua ausência. Desejava que fizesses parte de mim e que nada conseguisse expulsar-te. Queria sentir o teu cheiro e o teu corpo em tudo o que tocasse, como se, na ponta dos meus dedos, estivesse sempre o veludo da tua pele.
Detesto o sangue das feridas que deixaste abertas e que eu lambo para te sentir.
Elas são o teu rasto, a tua obra, o sinal da tua presença, a tua modificação do meu sentir, do meu ser.
Odeio a tua ausência, em cada recanto da casa, no frio dos lençóis, na mesa que não enfeitas.
Abomino a florista a quem já não compro flores, porque não há ninguém a quem as oferecer.
Antipatizo com a figura das outras que me olham e se parecem contigo.
Amargam os cigarros que fumo para matar o tempo infinito em que não existes, e não sei se são os cigarros que me vão matando se é a tua lembrança.
Enjoo o cheiro do perfume Paris que te ofereci e que nunca desapareceu deste quarto onde os nossos corpos se abraçavam, se comprimiam, se misturavam, no tempo em que ambos julgávamos que sexo era amor.
Não quero lembrar-me de ti e não consigo esquecer-te.
Odeio-te porque talvez ainda te ame!

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Lenda da Cova Encantada





Se existe local de uma beleza surreal, repleto de misticismo, de semblante enigmático é sem qualquer hesitação, Sintra. E julgo mesmo que o mais impressionante e majestoso monumento é a própria serra, em cujos recantos tentadoramente bucólicos se aninham as casas de Verão de alguns privilegiados da capital.
A magnífica vila de Sintra é toda ela mágica e cheia de esplendor – um reino romântico onde palácios majestosos, um castelo de contos de fadas, propriedades régias e mansões fascinantes emergem no meio de montes e florestas luxuriantes.
Caracterizada pelo seu encanto e serenidade singulares, a vila de Sintra oferece cenários de uma beleza surpreendente, com a sua vasta serra rochosa, densa vegetação e praias imaculadas.
Sintra é por si só um local de encantamento, de história, e de tão insondável, uma invulgar zona de fantasias e lendas.
Sempre que percorro os trilhos que serpenteiam pela serra, a minha imaginação, solta asas e vagueia nos céus azuis da fantasia.
Descia a estrada de Monserrate. Existem momentos e locais onde o tempo é intemporal, este é um deles. Os muros são cobertos de verde desde que mundo é mundo. O silêncio reina. A água corre ao nosso lado, pelos regatos, nas fontes, nas pequenas bacias e lagos que bebem o legado das encostas. Poderíamos ser personagens de um qualquer livro, numa qualquer época, que as palavras fluiriam naquele mesmo leito natural, de uma pureza transparente e imortal.
Continuei a destrepar a estrada afastando-me da vila. Após caminhar alguns quilómetros, deparei com uma porta improvisada com tabuas de madeira completamente escancarada. Com alguma dificuldade apercebi-me tratar-se duma pequena taberna isolada na planície árida, a várias léguas dos povoados mais próximos. Sentia-se que era o meio caminho de estranhos viandantes de proveniência obscura, tão obscura quanto o seu rumo, que os levava a passar ali e a parar para uma pinta de cerveja ou uma malga de vinho a regar um naco de pão com presunto.
Traziam sempre nos olhos o brilho fantasmagórico de quem andasse pela beira dos abismos mais negros, e contavam histórias incongruentes de miragens e assombrações que confundiam os caminhos na vastidão da planície, que tinha fama de lugar sinistro. Alguns demoravam-se um dia ou dois, recobrando forças num dos pequenos quartos do primeiro andar, toscos mas limpos. Porém, as noites não eram tranquilas. À hora rubra do sol-pôr levantava-se uma inesperada ventania que assobiava à volta da casa isolada, fazendo bater as telhas e estalar as portadas grossas. De apaziguador, havia apenas a mulher do taberneiro. Era um mistério aquela criatura graciosa e plácida que ajeitava o avental com os modos delicados com que tocaria o mais rico dos tecidos, e não havia memória de quando, como ou por que razão fora ela ali parar, casada com um homem tão grosseiro e brutal.
As horas cavalgaram por montes e vales sempre a trote. Traguei a noite ao mesmo ritmo que ia deitando abaixo algumas cervejas. Há uma brisa fria que obriga aos casacos. Depois de estender o olhar uma última vez sobre o balcão, os olhos do taberneiro dizem-me que é hora de voltar a casa.
Despedi-me da cerveja, e disse adeus a Sintra.
Já no apartamento desarrumado onde cheguei sem dar por mim, ainda havia uma réstia de calor. Nas colunas da sala ecoavam as notas rápidas e medievais da banda sonora do filme “Excalibur” de Trevor Jones. Havia um copo vazio e um cinzeiro cheio.
Passou-se tanto tempo que pareço não saber o que aconteceu e o que apenas foi imaginação na minha cabeça: às vezes parece que não houve passado nem ficção, que a distinção nem sentido faz.

●●●
No tempo em que os Mouros dominavam Sintra, os cristãos faziam frequentes incursões contra eles, chegando por vezes muito próximo do castelo.
Um dia chegou um cavaleiro verdadeiramente extraordinário. Tinha no olhar o fogo da inquietude interior, à qual nenhuma assombração poderia sobrepor-se assim como qualquer aparição padeceria de invisibilidade, pois aqueles olhos estavam obstinadamente voltados para dentro. Também a grosseria do estalajadeiro e a suavidade da sua tão bela mulher lhe passaram despercebidos.
Num desses recontros travou-se junto do castelo uma renhida batalha. Mas os cristãos foram vencidos porque o seu chefe - o nobre cavaleiro - havia tombado ferido e logo fora aprisionado pelos infiéis.
Conduzido ao castelo, encerraram o nobre cavaleiro ferido num húmido calabouço com cadeias nos pés e nas mãos.
O intuito era deixá-lo para ali abandonado, sem alimento nem tratamento até que a morte o levasse.
Porém, ao atravessar o pátio para as masmorras, foi visto pela filha do alcaide, que estacou petrificada, tal a impressão que o jovem cavaleiro lhe causara. A todo o custo a jovem donzela tentou saber onde o cavaleiro estava encarcerado. E pela calada da noite, com o auxílio de uma das suas aias, foi visitar o prisioneiro.
O silêncio e a escuridão reinavam na masmorra acanhada onde o cavaleiro português estava trancado. Cautelosamente, a jovem moura abriu o portão de grades e entrou. Deu apenas dois passos. A escuridão era intensa. Ouvia a respiração agitada do prisioneiro. Com a conivência da aia, acendeu um pavio, e a fraca luz iluminou defeituosamente o triste cubículo. Mas o cavaleiro português distinguiu perfeitamente o lindo rosto da jovem moura. Perplexo pela visita, o cavaleiro inquiriu:
- Que quereis, donzela?
Ela respondeu, com aparente serenidade:
- Curar as tuas feridas e trazer-te de comer.
- Quem vos mandou?  
- A minha consciência.
- E se vos virem?
- Espero que não.
- Quem sois?
- Zaida, a filha do alcaide.
Docilmente, o cavaleiro cristão deixou-se tratar pela bondosa e linda sarracena. Quando terminou, ela disse-lhe como despedida:
- Até amanhã meu nobre cavaleiro.
Dia após dia, Zaida não faltava ao prometido encontro. Com grande espanto dos mouros, as feridas do cavaleiro começaram a sarar.
Igualmente várias tentativas eram feitas no intuito de ser conseguido um resgate pelo importante prisioneiro. Por esse motivo, os mouros começaram a dar-lhe de comer.
Numa noite após o cavaleiro estar convalescido, Zaida entrou na masmorra.
Com a voz trémula e emocionada disse-lhe sem tirar os olhos do chão de terra barrenta:
- Venho dizer-vos adeus.
Ele tomou-lhe uma das mãos com arrebatamento:
- Zaida! Porque dizeis isso?
- A vossa família e o vosso rei ofereceram um grande resgate. Ireis sair amanhã, mal o sol rompa. E sei que não mais vos verei!
Ele atraiu-a a si.
- Zaida! Vinde comigo!
Ela esquivou-se.
- Não posso. Seria uma traição que a minha consciência não aprovaria.
- Mas eu amo-vos, Zaida! Amo-vos mais do que à minha vida!
- Também eu vos amo, nobre cavaleiro mas tudo nos separa.
- Zaida! Vou ficar!
Ela meneou a cabeça.
- Não sejais um homem tão louco. Não podereis ficar. Os meus querem o resgate e os vossos anseiam por vos reaver.
- Voltarei!
- Sereis provavelmente de novo ferido, ou talvez morto!
- E se vencer?
- Talvez seja eu quem deixe de existir!
O cavaleiro cerrou os punhos em completo desespero.
- Juro-vos linda donzela que sem vós não poderei viver!
- Nem eu!
- Então... Porque não vindes comigo?
- Poderei dar a vida por vós, mas não a honra. Também de vós não quero mais. Sois nobre e valente! Não peço que me esqueceis! Desejo mesmo que nunca mais a minha imagem e a minha voz saiam dos vossos olhos e ouvidos. Contudo... Sou eu que vos digo: Ide... E não regresseis!
O cavaleiro cingiu a linda moura com enlevo. Beijou-a nos cabelos, na testa, nos olhos. Ela voltou a esquivar-se. Chorava em silêncio. E murmurou, afastando-se:
- Adeus, meu único amor!
E, em passo célere desapareceu na desalumiada da noite. Apanhou rapidamente um ramo de alecrim, que pôs num pote sobre o parapeito da janela, para que o vento ao passar entre as frestas de madeira tosca trouxesse consigo a presença de um aroma acolhedor; colocou mais um cobertor na cama e deixou o seu pequeno livro, o seu tesouro, junto do jarro de água fresca. Mas não bastava. Não bastava. A abalada do cavaleiro assim que o sol espertasse, fê-la sentir desolada e perdida, o que lhe provocou, grossas lágrimas, quentes. Quase sem dar por isso, despiu-se e soltou os cabelos. Foi até à cama, abriu-a, e ali deu largas ao seu estranho desgosto, feito de espanto e desejo. Procurou-se. Descobriu-se, percebeu como era linda e triste, como tinha a força imensa feita da fragilidade que não quebra jamais. Despojada, vazia de tudo quanto lhe era familiar, mas plena de uma coisa nova que lhe ficara tão fundo e não sabia ainda como nomear, abandonou o quarto, deixando a cama meia desfeita cheia das suas lágrimas, dos seus odores, dos seus cabelos. Ninguém mais a viu nessa noite.
●●●
Novamente no meio dos seus amigos, familiares e companheiros, o cavaleiro português foi recebido com grandes demonstrações de alegria. A sua libertação foi celebrada com grandes festas. Mas, apesar dessa exuberância de carinhos, o cavaleiro sentia uma tristeza infinita. Voltou às armas. Dir-se-ia ávido de novas conquistas. E as suas expedições eram sempre contra os Mouros. Queria aturdir-se. Queria esquecer Zaida. Mas a sua imagem e a sua voz - tal como ela havia desejado - continuavam na sua retina e nos seus ouvidos, mesmo no mais aceso das batalhas.
Desesperado, depois de contínuas noites de insónia, fazendo do seu segredo uma força secreta, resolveu atacar de novo os mouros de Sintra, desafiando-os para novo encontro. O seu intento era assaltar o castelo - ou morrer! Reuniu maior número de combatentes e entusiasmou-os a tentarem fazer essa oferta ao seu rei e senhor. Todos os seus companheiros se mostraram dispostos a segui-lo e rapidamente se ultimaram os preparativos.
De surpresa, os cristãos subiram a serra de Sintra. Era noite. Uma noite tórrida de Verão.
Tentaram assaltar o castelo. Mas os sarracenos, verificando o reduzido número de combatentes cristãos, saíram ao seu encontro, dando-se novo combate corpo a corpo. O ardor posto na luta por parte dos cristãos era tanto que lograram entrar no castelo, fazendo-o cair em seu poder.
Mas logo em seguida os soldados portugueses foram acometidos de enorme e dolorosa surpresa. O seu chefe (o nobre e valente cavaleiro) procurava a formosa moura filha do alcaide e ambos haviam caído nos braços um do outro. Entregues à embriaguez desse momento de encontro, o cavaleiro e a jovem pareciam esquecidos de tudo o mais.
Os lábios colaram-se num beijo infinito. Um misto de dor e prazer percorreu-lhes o corpo.
Então os mouros começaram a reagir e os cristãos, privados do seu chefe, em breve se sentiram rodeados de perigos. Os mouros haviam conseguido reforços. Da atalaia divisava-se uma fila enorme de tropas sarracenas que vinham juntar-se às do castelo. Os cristãos ficaram cercados. Só então o cavaleiro enamorado se deu conta da gravidade da situação. Soaram trombetas. Levantou-se a ponte levadiça. Organizou-se o combate. Havia quase dois dias que ali estavam os cristãos esperando as ordens de D. Afonso Henriques, a quem haviam mandado um mensageiro. Mas a mensagem enviada ao rei cristão já não correspondia à verdade. A causa estava praticamente perdida. O chefe cristão separou-se da jovem moura, vestiu de novo a cota de malha, e travou-se o combate, heróico de parte a parte. Por fim, depois de uma encarniçada luta na qual pereceram muitos chefes cristãos, o cavaleiro chefe também caiu ferido.
Ao vê-lo caído por terra e coberto de sangue, Zaida ficou como louca. Tratou de arrastar do pátio o seu bem-amado e de escondê-lo num dos corredores. Aí, com esforço inaudito, e depois de verificar que não a estavam espiando, abriu uma lousa. Uma entrada subterrânea ficou a descoberto. Com mil dificuldades, entrou pela abertura, levando consigo o ferido, que havia desmaiado. Fechou a lousa atrás de si. Depois, quase sem luz e continuando a arrastar a sua preciosa carga, foi percorrendo galerias subterrâneas até chegar a uma sala preparada numa cova, que recebia luz indirectamente.
Nessa sala havia uma saída que ficava fora do castelo e já quase a meio da serra. Colocando o ferido num divã coberto de tecido precioso, Zaida pegou numa bilha e procurou a saída. Perto havia uma nascente. A moura sabia da sua existência. Encheu o cântaro de água e voltou a tratar do ferido, tal como fizera meses antes. O cavaleiro abriu os olhos. Recobrou o alento e ficou estupefacto quando soube onde estava. Quis saber dos seus companheiros. Ela beijou-o ternamente, dizendo-lhe:
- Que importa o acontece aos outros? Estamos aqui os dois. Não vos basta?
Ele meneou a cabeça, demonstrando o seu sofrimento.
- Não, não me basta! Fui eu quem os atraí a este combate para o que não estávamos ainda preparados. Só pensei em mim. Não podia a continuar a viver sem vos! Mas vejo agora que não devo viver à custa das suas vidas!
Com fala dolorosa, ela perguntou:
- Mas que pensais fazer?
- Juntar-me aos meus companheiros!
- Foram desbaratados, não penseis mais neles! Pensai antes em vos, que não tenho a certeza de poder salvar!
Ele fechou os olhos. Sofria. Moral e fisicamente. No dia seguinte, mais fraco ainda, pediu:
- Dá-me de beber...Tenho secura! Arranha-me a garganta.
Ela observou:
- Amor meu, eu tenho de ir buscar mais água. Esta acabou-se. Mas volto já!
Ele segurou-lhe numa das mãos:
- Não...Deixa-te ficar... aqui... Ao pé de mim...
Ela beijou-lhe a testa escaldante.
- Não demorarei. Prometo que não demorarei...
Saiu. A algazarra havia terminado. Dir-se-ia que a batalha chegara ao fim. Zaida encheu célere a moringa e encetou a caminhada para a sala subterrânea. Porém, quando estava já próximo da entrada, uma seta vinda do lado do castelo acertou-lhe em cheio. Caiu de joelhos agarrada ao cântaro da água que verteu metade. Teve forças, porém, para se arrastar até ao local onde o mato tapava a entrada. Rastejando e perdendo sangue, Zaida só caiu junto do seu cavaleiro. A bilha caiu também e a água perdeu-se. Zaida havia desaparecido do mundo dos vivos.
Desesperado, o nobre soergueu-se do leito e veio ajoelhar-se junto da sua bem-amada. Suplicou:
- Ó Deus Misericordioso! Perdoai-nos os pecados que cometemos neste mundo... E juntai-nos... De novo... No Céu!
Com o esforço feito, a ferida do cavaleiro voltou a abrir e o sangue cristão do jovem misturou-se com o sangue mouro da linda Zaida. E esse sangue só parou de correr quando ambos pareciam já duas estátuas de mármore.
No castelo, os mouros haviam mais uma vez repelido o ataque dos cristãos. Procuravam Zaida e o ferido por toda a parte. Foi então que um soldado descobriu o rasto de sangue deixado pela filha do alcaide. Seguindo-o, foi encontrar os corpos sem vida do cavaleiro cristão e da jovem moura, lado a lado, numa larga cova distante do castelo.
Desde então, diz a lenda que, em certas noites de luar, quem tenha a ousadia de vaguear pela Serra de Sintra verá sair de uma larga cova, junto a um penedo, uma formosíssima donzela vestida de branco, com uma bilha na mão. Com passos apressados, a jovem de branco dirige-se para uma nascente de águas finas. Depois, regressa à mesma cova donde saíra, com o pequeno cântaro já cheio. A meio do caminho solta um doloroso gemido. Depois, desaparece, qual branco fantasma...
●●●
Era uma noite semelhante às outras, talvez mais perfumada de luz e sentia-se um sabor a esperança no ar.
A serra da Arrábida afastava-se já da noite, projectando o nascer do sol e o brilho nas alvas portadas do meu quarto.
O dia ia-se revelando mais, já com a Lua e Vénus ausentes.
As janelas entreabertas da nossa memória, tal como as do nosso quarto, deixavam entrar uma intimidade que pobremente existiu. Ou por vezes aconteceu como acto isolado num passado que deixa de o ser, de cada vez que a brisa abre mais um pouco as janelas e faz espreguiçar as cortinas e o que está dentro da casa habitada da nossa memória é o mesmo que está do lado de fora à procura de voltar ao interior. Será que algum dia saíste de mim? Será que algum dia habitas-te esta casa?
A brisa espalha-se pela casa, faz-se notar, estende-se como tu cá dentro. Tem cheiro, textura, sabor.
Penso nas voltas da minha vida, nas promessas de eternidade que nunca se cumprem. Penso nas relações que se juram sólidas e ao rasgar das folhas do calendário acabam.
Penso na vida que se vai tão rápida como um suspiro. Penso nos dias que me levanto com a alma reduzida e me deito com a sensação de a ter perdido. Deixo flutuar o pensamento no bote das minhas emoções. Houve um tempo em que pensei que a minha vida ia ser especial, distinta. Ideais, valores superiores, razões para lutar. Hoje vejo-me preso na monotonia, na cor cinza, na existência com uma única razão a de lutar por mim mesmo sem grande firmeza. No fundo vivo longe do mundo submergido na deliciosa melancolia.
Abro os olhos, ergo-me… O fumo do teu cigarro já fugiu, as janelas dentro de mim batem com força! As portadas esmurram a parede. Olho para ti…
Somos os mesmos, é verdade. Mas, o vento é mais calmo, a chuva hoje é sol e o toque não é o teu… é o de uma flor.
Estou cansado de viver sozinho com alguém! Tenho saudades de te dizer o que não disse!
Mas, não se pede a ninguém que não parta e não se pede a ninguém que volte. Quanto muito, espera-se e ainda assim é alma que se consome. Não tenho existência suficiente para ocupar este espaço todo onde tu faltas. Dirijo-me à janela para olhar o céu. Está frio, mas o sol brilha intensamente.
Percebo que é exactamente assim que me sinto. Apesar de viver numa sociedade fria e desumana, a esperança num futuro melhor aquece-me o coração. Sou mesmo um sonhador!
Observo a silhueta de uma jovem de vestido branco, que aldeaga com os olhos colados ao asfalto. Medito na lenda que ouvira na taberna.
Tu fazes-me imaginar a jovem donzela da cova encantada, do amor místico que só a morte consegue unir.
E, nos dias em que estou assim, prenhe de aflições, torneio a minha mão em volta do calor do teu corpo apartado enquanto tu te diriges com passos apressados, para a nascente de águas finas, onde viste correr as lágrimas que banharam o nosso amor. Depois, regressas à mesma cova donde saíste, com a sacrílega perfeição, mas sabendo que foi o meu corpo aquele que aceitaste.
A meio do caminho soltas um doloroso gemido. Depois, desapareces, qual branco fantasma...


(Texto baseado na lenda da Cova Encantada)
Autor: Do domínio popular
Fonte: Biblioteca de Sintra