“Amar alguém que não possuímos
ou amar um ser que perdemos é preservar na alma um segredo infinito, uma dor
imensurável que só a nossa morte nos desvenda e tranquiliza!”
JC
Foi
parida e engendrada num lago enlameado de ilusões e desde cedo que beijou a
fome e afagou o desanimo.
Ela
é bonita sem ser uma mulher pulcra na sua integridade. Possui uns olhos
rasgados que parecem flutuar com o movimento ondulante do corpo. Igualmente dona de uns lábios carnudos exala a
ânsia crua e a lava incandescente que inunda de forma esbraseada qualquer
coração menos atrevido.
Prostituta de rua deambula pela cidade que ferve por
entre os dentes das horas tardias.
Desfila numa ‘passerele’
de asfalto, sem nome, cor, ou aplausos.
Ensaia gestos, movimentos apelativos com as ancas bem
torneadas e os seios hirtos. Os lábios cor de fogo corados de batom reles emanam
um misto de prazer e náusea.
As esquinas que habita são abrigos
armadilhados, consumidos pela escravidão e pelo medo. São as esquinas da
rua dos dias que passam.
Ao longe, numa falsa timidez, tem no olhar as
primaveras que não viveu. Há no ar um perfume, um desejo ou a memória de um
sonho...
Acorda todas as manhãs num vazio sem amparo, numa
solidão sem nome. Doce, quase humana, olha a tarde em busca de um milagre que
não acontece.
A blusa transparente ondula, a minissaia convida...
Tem uma voz fraca, doces e densos, os olhos parecem
húmidos. Espera impaciente em qualquer lugar a sombra dos seus pecados. Em
algum lugar, a sua boca tece, ávida, o calor húmido e doce de alguém com hálito
a mortalha barata.
Em algum lugar, o seu gemido cala o som de algumas traidoras consciências.
Em algum lugar, o seu gemido cala o som de algumas traidoras consciências.
Em algum lugar, a sua dança extasiante, confunde o
espaço e o tempo estagnados numa poça enlameada da uma vida deslustrada.
Em algum lugar, amor, paixão e sexo, não terão
nenhum sentido.
Em algum lugar, será o imaginário de todos nunca
imaginados. Luta sem tréguas uma batalha sangrenta pela paz do amanhã.
Mas, amanhã será o ontem esmagado, o rasto dos seus
passos serão meras sombras no desalinho das emoções fugazes de uma hora. Galga
os dias, afugenta as horas, abraça os instantes em despedidas com um corpo
prostrado, com um rosto sem expressão.
Procura as marcas da sua presença e encontra somente
fantasmas em agonia.
Cansada de amanhãs nascidos mortos, caminha na
solidão sem nome, sem vida.
Hoje, mais do que ontem, sabe que ninguém escutará as
suas súplicas. Vive paredes meias com a morte, sem ninguém que testemunhe a sua
existência... Morre em cada lágrima o desespero do tempo... Resiste mais um
instante, como quem ainda espera por alguém ou por alguma coisa...
Morre dentro de si a última memória daquilo que foi vida,
morre dentro de si o último lugar onde acreditou em milagres...
Indiferente, a tarde cai, igual à última tarde...
Sente que a sua solidão é o seu pior carrasco...
A noite chega, escura, quase morta... Contínua só,
absolutamente só... Não sabe se está louca ou lúcida... Se ébria ou sóbria, se
morta ou viva. Esquece-se dela, do seu nome...
Sabe que ninguém se lembrará de quem foi... Será simplesmente
a puta do bairro, a tal que não tem ninguém, a tal que chora todas as noites...
Será apenas mais uma mulher sem história... Uma puta
sem nome…
O lusco-fusco tomou já conta da cidade, as cores e
as faces, são apenas silhuetas anónimas, sem alma e coração.
A rua estreita fica mais povoada, sombras
atravessando sombras...
Acabou de negociar as entranhas. Negou mais uma vez
sentir-se amada.