"Amor não é duas pessoas de mão dada; é a vida de mão dada com a morte, a alegria de mão dada com a tristeza, o bem de mão dada com o mal"
João Fernandes in ‘Povo que lavas no Rio’
Desperto geralmente sem mim
Defronte do espelho novo contemplo uma velha lembrança
Já não me sorri... Nem sequer lacrimeja por mim
Fixo, apenas as marcas indeléveis do tempo
Já não é criança
A pulcritude de sua vivacidade está ofuscada pelas agruras passadas
Caminha taciturnamente em direcção a si mesma
Nos olhos o brilho triste, de um adeus, de uma despedida
Na boca o sorriso desfeito
Não é possível viver de memórias
O velho espelho coage-me a percorrer novos caminhos de significados
Um vazio incomensurável preenche o tom cinza dos meus dias
Dos meus encovados e bacentos olhos
É como se uma parte de mim tivesse sido enterrada sem dor, na arca do tempo
O espelho mostra e revela, o que ainda me resta
Falta-me a luz daqueles olhos que me acabrunhava
A voz que me arrancava do torpor que o tempo pariu
O toque que me queimava a pele quente de desejo
Cerro os meus olhos, cheiro o frio que me circunda, mas não me consigo sentir
Abro os olhos a medo
Já não consigo ver a cor das muralhas que me cercam o desgostoso coração
Perco-me nas partituras da música que já não faço.
São notas perdidas?
Pedaços de um sonho?
Vidas desfeitas?
A solidão enegrece os dias que me fogem célere num cavalo alado
O sangue estagna nas veias do meu corpo débil e enfermo
Tantos e intensos desejos que se perderam no atalho da felicidade
Caminhos díspares criaram um abismo que medrou dentro de dois corações
Recordo aquele entardecer frio e ardente de esperança
Hoje, aqui só e sem entender, as escolhas que fizemos, os passos que não demos
Às vezes enxugo a lágrima da despedida que não tivemos
Sei que nada é por acaso que tudo tem sempre um motivo
Sento-me no regaço da imaginação à espera de respostas que talvez nem existam
Ainda anseio por palavras que se esqueceram de mim
Além da velha imagem que vejo defronte do espelho novo
Há uma alma vagabunda que deambula em fantasia pelas ruelas estreitas do teu corpo
Um espírito que luta com o coração em chaga uma esgrima de amor sem fim
Num duelo permanente, amargurado, sem vencido ou vencedor
Agora, colecciono noites. Noites escuras, frias e tristes.
Enclausuradas em frascos da minha memória que visito invariavelmente nos dias mais tristes.
Apenas um frasco permanece vazio…
Junto noites em que oiço a chuva numa precursão ritmada sem som
Escolho uma ao acaso onde faço amor numa cama de sonhos
Deixo-me abraçar pelo frio que me invade a pele, me percorre as veias num arrepio de saudade
Oiço o silêncio do escuro e vejo o murmúrio da tua voz sempre mais distante
Apenas o latir de um cão perturba o meu choro abafado e compulsivo
Abro a janela do meu recanto de par em par
O balançar das folhas nas árvores faz-me meditar na incerteza da vida e na convicção da morte
Procuro aquele olhar penetrante e lascivo que caiava o azul do meu
Que tantas vezes disse tudo do nada que havia para dizer
O sorriso estridente que nos levava em sepulcro silêncio para um lugar mágico, só nosso
Onde não precisávamos ter receios
Éramos apenas nós mesmos, sem máscaras, sem medos
Seres inacabados na sua imperfeição que se achavam após uma longa e prolongada ausência!
O sonho ruiu, o meu, de mim, de ti, de nós. Desmoronou-se toda a magia, como se fosse de areia a desfazer-se na preamar
E eu, em que me transformei?
Em sombra, apenas uma sombra que deseja andar de mão dada com amor
Um espectro com a vida de mão dada com a morte
A alegria passou a andar de mão dada com a tristeza, o bem de mão dada com o mal.
E tu?
Cobre teu coração com um xaile negro que te aconchegue e proteja do frio e da solidão do amor
E Eu?
Eu deixo que a alma me leve sem destino para não mais ser encontrado a contar os dias que me resta
(Este texto foi inspirado nas dolorosas mas realistas palavras de João Fernandes)