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sábado, 26 de dezembro de 2009

Dias da minha ausência


Do meu lado esteve sempre, sempre a mulher que mais gosta de mim. Chegou o momento de se inverterem os papéis.
Passado pouco mais de duas semanas no hospital, estás de novo de regresso a casa.
Quando tudo parecia mais uma vez impossível, conseguiste vencer de novo, mas o teu estado é extremamente débil. Os cuidados agora têm de ser redobrados.
Olhavas para mim com um olhar aflito e implorativo, sem te conseguires expressar ou fazer uso dos braços inertes para me afastares.
Desisti. Não consigo resistir ao teu olhar.
Eu sei que tenho de o fazer, embora te possa provocar algum desconforto... ou talvez dor. Mas ainda não arranjei coragem para tentar de novo. Tenho tanto medo de falhar...
Passei um bálsamo calmante sobre as tuas pálpebras, que já estavam fechadas, e com dor, de tanto choro, e disse-te que tudo iria correr pelo melhor.
Disse-te que contemplarias o mar daqui a mais cem séculos, quando as rosas do jardim murchassem e eu me picasse mortalmente num dos seus espinhos. Que o tempo seria multiplicado por sete e alcançarias a imortalidade.
Isso acalmou-te. Passei de novo o bálsamo nas tuas faces que se encheram de alegria.
Falei-te do mais belo que havíamos vivenciado no mundo, e que tudo o mais era sem importância.
Disse-te…
Disse-te que estarias sempre comigo, e que guardaria o teu coração num frasco de alabastro branco, como o mármore das igrejas, e que serias sempre habitante das profundezas do meu ser.
Acalmou-te.
Sei que és a pessoa com menos culpa em tudo isto.
Fizeste-me passar mais seis horas de impaciência no hospital precisamente dois anos após o teu último internamento... o teu problema agravou-se. Mãe! Já não sei que fazer. Estou cansado e impotente.
Desculpa não sei mais como agir... penso... penso mas não sei. Tu estás mal, o pai está pior e eu estou... como só Deus sabe.
Se Ele existe, compreenderá a minha revolta e desespero... ao ver-te sofrer a ti que estás doente, ao pai que enfermo está. Eu, eu sou o que menos importa.
Apesar de tudo estão vivos e eu adoro-vos. A ambos devo tudo o que sou como pessoa.

Adoro-te pai.
Amo-te mãe.


In: Ano Louco (adaptação)

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Porque sou um sonhador?


Muitas vezes viro-me do avesso na tentativa desesperada de ser poeta, mas o talento foge-me e por essa razão escrever basta-me.
Nestes dias em que a minha mente vagueia pela nebulosidade, a beleza confunde-me e o encantamento fere-me ao ver as chagas das ruas.
Sempre que vejo uma criança sofrer antevejo menos um raio de sol que brilha.
Julgo que caí na terra por acidente. Enquanto anjo tropecei certamente numa nuvem e aqui tombei.
Por essa razão sou um sonhador… um homem pacífico, distante, onde os sonhos predominam.
Sou um ser que imagina que o mundo pode ser um pouco melhor. São assim os sonhadores.
Por vezes deixamos passar desapercebido coisas boas na nossa vida.
Por vivermos de fantasia, muitas vezes esquecemos o mundo autêntico que nos rodeia.
Se amantes, vivemos constantemente na lua, as nuvens a nossa paixão.
Para o sonhador, aquela pessoa é um ser perfeito, incomparável, insubstituível... Mas não é mera criação de sonhos, porque quando encontramos alguém que nos chama a atenção é porque realmente essa pessoa é algo com que já sonhamos há muito tempo.
E quando a morte nos olha de frente, e nos sorri, o sonhador ergue a cabeça, e sorri sem receio de volta.
E só irei um dia lamentar esse momento, se deixar a vida sem realizar o maior dos meus sonhos... sonhar com a vida que concebo, com os ideais que visiono.
Mas, a derrota é nossa consorte, porque somos incapazes de vencer o autismo dos fidalgos que passeiam pelos campos de caça em busca de mais um triunfo.
Todavia, as lágrimas que me correm pelo rosto da derrota são mais importantes que a vergonha de me calar por dentro.
Sei que morreu mais um raio de sol, porque observei a expressão mais triste que vi até hoje.
O menino do gorro amarelo sujo. Crostas no rosto e nas mãos. Lembrou-me um quadro de um qualquer pintor flamengo do século dezassete.
Um corpo que estava pesaroso e abismalmente desolado, mas que de forma ágil fintava o transito caótico da Avenida da República, com a mão suja e trémula à procura de um cêntimo junto das janela cerradas dos carros apressados.
Fitei-o por um momento. Um lapso de tempo que se perdeu naqueles olhos negros e sujos.
O rosto assustado fazia lembrar a imagem de alguém que viu toda a sua família parecer num bombardeio de Gaza, a cabeça dos pais dilacerada por um atirador furtivo em Sarajevo ou o genocídio dos amigos num atentado em Bagdad, às margens do rio Tigre.
Fiquei todo o dia a pensar como foi a vida lazarenta que esse menino levou e que esculpiu aquela expressão.
E não me sai da cabeça, o rosto amargo desse menino.


22-12-2009

domingo, 13 de dezembro de 2009

Todos os dias matuto nisto...




"Deus, para a felicidade do homem, inventou a fé e o amor.


O Diabo, invejoso, fez o homem confundir fé com religião e amor com casamento."





Machado de Assis

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

A Traição de Psiquê


Na tarde do passado sábado, tive o prazer de conhecer (ou rever) 13 dos autores que participaram no Projecto A Traição de Psiquê.

Apesar do mau tempo, o auditório da Biblioteca encheu e procurámos dar à cerimónia a dignidade que a colectânea merece.
Seguidamente, teve lugar uma tertúlia subordinada ao tema do amor e do erotismo, da responsabilidade da Argo, nossa parceira, neste projecto, à qual alguns dos nossos autores e convidados assistiram e/ou participaram.

Aos autores presentes foram entregues os livros. Hoje, entretanto, fizemos seguir os restantes livros e documentos legais para os autores que não puderam estar presentes. A correr bem, livros chegarão entre 4ª e 5ª feira. Os portes estão pagos e, tal como se disse, oferecemos um outro título da nossa colecção de poesia.


Informamos, ainda, que, no final do mês de Janeiro, iremos seleccionar 10 livrarias, em Portugal, para onde enviaremos alguns exemplares de A Traição de Psiquê.
Com os melhores cumprimentos e gratos pela participação neste nosso/vosso projecto,

João Carlos Brito, editor




PS: Recebido por e-mail

sábado, 5 de dezembro de 2009

Fantasma de mim


Corria célere o ano de 1968. O mês de Novembro tremia com frio e com ele a escola primária da minha aldeia tiritava com o nevão das últimas horas.
O manto branco cobria parte do chão. As primeiras crostas de neve encostadas à berma faziam um improvisado muro branco.
Cai neve no campanário da igreja. Cai neve no meu corpo em flocos de saudades.
Nas árvores à minha frente, o gelo fez crescer as estalactites que derramam água vidrada, gelada, colorida pelos faróis, de carros que perdidos, vagueavam na estrada branca, dando a sensação que velas iam clareando o caminho. Todas estas sensações de momentos ganhos no regelar dos ossos são como espasmos de vontade inata de conquistar o mundo.
Este manto alvo e gelado desce a encosta revestindo a serrania, onde nem as lagoas escapam da brancura.
Abeirei-me da escola.
A porta está encostada, reconhece-se o espaço ali a convocar-nos.
Entrei sorrateiramente, olhei a sala escura. As janelas estão fechadas, a atmosfera é pesada, o quadro preto riscado ao de leve pelo giz alude que estou num templo de estudo. Um espaço sagrado da sabedoria que muitos procuram e nunca vão ter.
Não se vislumbra vivalma. Falsa conclusão. Após os meus olhos se adaptarem à penumbra, encarei com um rapazola sentado no centro da sala. Parecia um espectro preso a uma velha e desengonçada cadeira.
Aproximei-me mais um pouco pois a débil luminosidade podia atraiçoar-me. A custo olho as feições de miúdo enternecido que bem pode esconder um velho de espírito.
Escreve num bloco de capa preta, como se não houvesse amanhã. A mão direita riscando incessantemente a folha ebúrnea. Eram imensas as folhas salpicadas de azul-escuro, uma tinta que carrega o peso da vida, cheia de intencionalidade, de devaneios, os devaneios são a objectividade do que nos apetece, do que nos assola, aquele sujeito sentado na cadeira do centro pensa, sente, arrepia-se, comove-se, e isto é o que ele grava no caderno, não lhe peçam para inventar sentimentos, pedir-lhe isso é pedir que minta, que renuncie à sua própria vida. Aproveitei para espreitar por cima dos seus ombros, saber que coisa tão afincada concebe com toda a sua concentração. Apesar das minhas movimentações, nunca deu pela minha presença.
No topo da folha, em realce, “Se o arrependimento matasse…”, a lengalenga que a professora da primária certamente lhe meteu na cabeça. Fiquei curioso em questionar o que tanto o apoquentava. Mas por receio não o fiz. Mas, sei que responderia asperamente:
- Tudo!
Mas que tudo? Um rapaz que tão jovem parece, o que lhe faltará?
- Falta-me tudo!
Quantos de nós não sofremos deste “Falta-me tudo!”?
Tu, não? E tu?
Sim! Claros, todos já sentiram esta dubiedade.
Sem nada que o fizesse prever, uma tomada de consciência rebenta com a bolha da criatividade que o envolve, e soltam-se lágrimas das suas vistas que gotejam suavemente como um fio homogéneo e incolor, purificando o tumulto, a este pobre rapaz que por casualidade não foi brindado para assinar o tratado das paixões das almas.
Certamente que está ainda para vir a sociedade que agrade a todos, que pense nisso quem tem tempo para utopias, para sonhos desmedidos e hiperbólicos, porém que seremos nós sem os sonhos a não ser cadáveres conscientes, gente viva com coração de morto? Pelo menos quem se arrepende vive.
Mais uma vista de olhos no caderno preto do enigmático:
- As minhas desculpas aos meus sonhos imperfeitos. As minhas desculpas a todos os que magoei e vou magoar.
Da mesma forma irreflectida levanta-se, abre as janelas do mundo, e respira o ar maligno do arrependimento.
Senta-se mais uma vez, e mais um vez, na folha de papel:
- Como estou arrependido mãe.
Arrasta a cadeira de rompante, enquanto se dirige ao velho quadro. Trespassa como por sortilégio a ardósia negra, fazendo-o vibrar num alucinante e estridente som que se propaga pelo oco da sala. Observei estupefacto a tatuagem no negro do quadro vincada em linhas brancas de desilusão.
Muitos anos já correram, imensos nevões fustigaram o campanário da igreja, muitos flocos de neve escorreram pela minha face afogueando-a de saudades.
Hoje, em pleno mês de Novembro penso que esse rapazola era eu. Que transpus, através do quadro, para o presente os medos de criança, os fantasmas que sempre pressagiei.
- As minhas desculpas a mim mesmo.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Convite