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quarta-feira, 31 de março de 2010

Rosto



Entre as veredas de um jardim antigo
Tenho um rosto guardado num canteiro
Que rego com as lágrimas da descrença
Os seus olhos são amaciados pela noite
Desenhados outras vezes pelo sol
Rosto que foi o primeiro e derradeiro comigo.



Foste como a imagem de pedra nos olhos da terra.
Foste como a imagem da poesia para os bêbados e poetas.



Foste como uma porta a abrir
Uma janela a fechar
Uma flor a florir



Outros rostos impedem-me a viagem
Mas nenhum me convence
Enquanto não der pela passagem
Do rosto que não sei a quem pertence
E que nunca fez parte da minha paisagem.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Testamento



Quando eu morrer
enterrem o meu coração
por baixo de um velho castanheiro

Quando eu morrer
ofereçam os meus pés
ao pobre que caminha

Quando eu morrer
façam das minhas mãos remos
da barca pobre

Quando eu morrer
ofereçam a luz dos meus olhos
ao faroleiro daquele molhe no mar

Quando eu morrer
o que sobrar
pode ficar ai a apodrecer


24-03-2010

sábado, 20 de março de 2010

Até ao Porto


“Sentei-me na carruagem uns minutos antes da partida, folheando um jornal diário e olhando a manhã azul que se estendia sobre a gare do Oriente.
De repente, a minha atenção é captada por uma mulher que se senta num dos lugares opostos do corredor, num banco virado para mim. Teria cerca de quarenta anos, calculei, enquanto a via arrumar as suas coisas e sentar-se. Era uma mulher belíssima: cabelo longo ruivo e bonito, roupas sofisticadas, uns olhos esverdeados sob os óculos escuros que acabava de retirar.
Notavam-se aqui e ali pequenos excessos de moda, embora toleráveis a uma mulher bonita que as usava com o mesmo bom gosto com que usava o seu encanto natural.
Quando era miúdo, um dos muitos filmes que me marcou foi o Shangai Express, com Marlène Dietrich, um filme dos anos trinta de Josef von Sternberg. Esse filme criou para sempre em mim, no início da adolescência, o mito da mulher misteriosa. A mulher misteriosa que viaja sozinha num comboio, a sua beleza enigmática e o destino desconhecido para o qual se dirige. Suponho que mais tarde alarguei este conceito a outros meios de transporte nos quais viajei, mas o comboio era a mística original.
Strangers on a train, de Hitchcock sempre foi para mim um dos mais bonitos títulos do cinema, a expressão desse enigmático ponto de encontro para viajar.
Cada uma das mulheres bonitas que recordo ter encontrado a viajar sozinha era encaixada num sonho romântico com formas de película a preto e branco, num recanto da minha imaginação. Só que esta mulher com quem viajei, fez cair esse mito que armazenara no meu íntimo desde a adolescência.
Mal o comboio saiu da gare do Oriente, pegou no seu telemóvel Nokia de linhas estranhas, um modelo que eu desconhecia, e começou a fazer chamada atrás de chamada.
Olá, saí há dois minutos. Assim foi a viagem até ao Porto.
Chamadas e mais chamadas, longos minutos de conversa frívola e irritante. Será que Shangai Lily, a personagem de Dietrich, e as outras mulheres solitárias com que viajei no grande écran, teriam pensamentos e conversas íntimas assim, apenas cerceadas pela inexistência de um meio de comunicação apropriado? Levantei-me e fui fumar um último cigarro, deixando aquela revoada de palavras para trás, junto com os mitos e os fantasmas do passado.”

 In: Asas de bobloleta

domingo, 14 de março de 2010

A razão de um Adeus



Hoje faço 51 anos.

Não escrevo isto para que me dêem os para parabéns. Afirmo-o, para dizer um Adeus a este espaço. Até quando? Eu não o conseguirei dizer. Eventualmente quando conseguir ser um outro homem. Um homem pragmático, individualista, e sem coração.

Uns voltam, outros partem.

Chegou a hora da minha vida em que é preciso avaliar tudo que fiz dela até ao momento! É necessário passar o pente fino todas as situações vividas, varrer para fora de nós tudo que não nos acrescenta nada e saber tirar lições das escolhas, por vezes, infelizes que tivemos ou teremos em alguns momentos.

Os tombos da vida dão-nos um olhar mais refinado, para perceber coisas que só o tempo conseguiria mostrar. Por vezes e são muitas, é deixarmos de viver a nossa vida, para apenas vegetar no mundo, e perder tempo com coisas insignificantes.

Chega-se apor vezes a pensar que não se acredita em quase ninguém, em que dá vontade de criar um universo paralelo, vontade de fugir de tudo e de todos.

Esquecemos que a vida é um momento insignificante. Não nos lembramos sequer como somos banais. E basta um simples segundo para nos transformarmos em pó, que o vento levará para longe.

Durante uma fracção, neste tempo e neste espaço, vivi para ti, esqueci família, esqueci os amigos que não tenho, esqueci-me de mim…

É tempo de cerrar o meu coração. É hora de dizer um adeus. Despedir-me de ti, de todos, e principalmente de mim.

Irei confinar uma fase da minha vida. Uma vida sem cor, desbotada de amor, ferida de dor.

O medo assola-me de novo.

Tento agarrar-me a algo forte, tento agarrar-me a uma motivação que me faça lutar, mas encontro-me sempre só.

Apetece-me apenas esperar, esperar que esta imensa ventania me envolva e me leve, transportando todo este tormento como transporta o pó que ela beija, escondo-me de todos, escondo-me de tudo. Não há ninguém que me possa ajudar.

Ninguém me iria entender... nem tu!

Não quero perder a fé...

Não quero perder a esperança... mas resta-me apenas viver... viver com o eco do silêncio a ruir no espaço vazio onde me encontro!

O mundo esta mudado, e com ele vamos tentando mudar também, a diferença é que nós tentamos evoluir, o mundo parece regredir a cada segundo que passa.

Basta olha para o nosso lado.

A todos o meu obrigado.

Até sempre!

sexta-feira, 12 de março de 2010

A nossa primeira vez


"O desejo exprime-se por uma carícia, tal como o pensamento pela linguagem "
Jean-Paul Sartre


Acredito na força da escrita. Confio no seu poder. E só concebo escrever se me rasgar até ao âmago para o fazer.
Não condeno quem escreve apenas em busca de beleza estética.
Não sentenceio quem escreve com base na invenção pura, sobre algo que nunca sentiu.
Todavia, para mim a escrita é um sistema espinhoso, tem de começar por uma dor interior.
Eu não uso as palavras para escrever sobre mim, mas entrego-me nas palavras que escrevo.
As minhas figuras são fictícias mas tão reais, que quem as lê, pode pensar por vezes estar perante um espelho.
As personagens não existem, mas vivem aqueles sentimentos e sensações.
A solidão, a tristeza e o desespero existem e eu conheço-os.
Conheço-os bem.
Porque eu próprio os vivi e vivo. E este texto é figurino. Sei que alguém irá pensar e dizer… “Não é, que me revejo aqui?”

Não quero esquecer o dia que senti pela primeira vez as minhas mãos em ti, percorrendo todo o teu corpo numa carícia de desejo.
Na penumbra do meu quarto, o teu corpo desarmado encostei à parede.
De olhos fechados de semblante calado, inspirava o teu perfume que dançava no ar num misto eterno inebriar.
Teus cabelos espalhados em desalinho contrastavam com o níveo do meu pensamento.
Acariciei as tuas pernas de mulher como curvas sinuosas de um destino ignorado.
Tu cedida. Suave. Tão perto, que podia acariciar a tua mente, contornar a tua face, tornear os teus lábios, afagar os teus cabelos e sussurrar ao teu ouvido, frases desamarradas sem mágoa e sem lamentação.
Quis dizer-te o que nunca disse.
Dizer que me libertei, das algemas do passado, que quero viver a teu lado.
Que para sempre serei, mais verdade que sonho, mais refúgio que fuga, mais refúgio que adeus.
Os meus olhos desejosos de ti penetraram os teus e disseram o que os lábios não conseguiram dizer.
Os corpos fundiram-se numa valsa erudita de compasso binário composto.
O tempo correu veloz, sem horas, minutos nem segundos. Apenas um fragmento e nada mais. A nossa primeira vez, não esquece, porque existem muitas primeiras vezes. Mas, aquela nossa primeira vez terminou com um gemido de amor.

12-03-2010 (cerca das 15:00 horas, porque a hora é importante para mim e para alguém.)

domingo, 7 de março de 2010

Hotel Califórnia


Ontem saí à rua, de noite. Enveredei à esquerda na via principal e dei por mim numa estrada escura e deserta. O vento fresco penetrava pela janela do automóvel e acariciava-me a face esquerda e revoltava-me os frugais cabelos que me restam. Passei alguns quilómetros às voltas comigo mesmo, modesta companhia. Não vi rostos nem pessoas. Não vi nada. Apenas a solidão dialogava comigo o que me impedia de adormecer. Este é meu mundo. Um orbe em que a monotonia sou eu.
Um odor putrefacto emergia à arredonda do vento. Ao longe avistei uma luz de néon que tremia como eu de frio.
Quanto mais me aproximava da trémula luz, mais a minha cabeça rodopiava, causando-me náuseas. A vista começou a ficar turva. O suor gélido começou por me inundar primeiro as têmporas e de seguida todo o rosto.
A sensação que sentia era inesperadamente estranha. As pingas de suor cada vez mais abundantes inundavam-me a vista impedindo-me de ver a estrada. Encostei o carro numa berma. Desliguei o motor e abri mais o vidro da janela para que o vento frio me despertasse daquela infernal sensação. Ouvi o zunido da luz do candeeiro de rua que me cumprimentava com a sua melodia. Senti o roçar de algo no arbúsculo e vi de soslaio o brilho de olhos por entre arbustos. Aqueles olhos fixavam-me. Eu, contrariamente soltava-me do mundo real. Uma aragem trouxe o som longínquo de um comboio que passava rasgando a noite e retalhando o silêncio. Tinha de sair do carro e dar uns passos para despertar daquele letargo que me estava a condicionar a consciência.
Caminhei alguns metros, passos, de uma tontura perturbante. A custo cheguei a um banco de madeira que ali pernoitava indiferente ao escuro, ao frio e a mim. Numa conversa muda, queimámos cigarros e mais cigarros. Desabafei com ele sonhos, invejas, segredos e devaneios. Após algum tempo de parlatório comecei a sentir-me um pouco melhor. Estava a fazer-se tarde. Já a Lua nos sorria alto e ambos tínhamos sono. Ambos havíamos perdido a noção das horas e o céu já estava a fechar.
Logo de seguida começou a chorar e dele descendiam gotas que nos acertavam mas eram mornas, suaves e caíam suavemente como carícias.
O cheiro da terra molhada embalou-nos e tapou-nos com um pedaço de jornal da manhã que um qualquer mendigo deitou fora sem ler, amarrotado.

Lá estava ela na entrada da porta. O brilho do néon já não me afligia e vi na perfeição a silhueta da mulher vestida de vermelho. Um leve odor a sândalo prendeu-me as narinas. Passou a seguir-me e a acariciar-me o nariz.
Ao longe ouvi um sino, o sino da recepção. Pensei para comigo: “Estarei no paraíso ou no inferno?”
A mulher de vermelho acendeu uma vela e quis acompanhar-me até ao meu quarto.
Percorremos um corredor longo também trajado de vermelho. Ouvia vozes que se soltavam dos quartos por onde passávamos. Vozes afinadas, melódicas que me diziam:
“Bem-vindo ao Hotel Califórnia. Um lugar encantador. Um rosto encantador. Há muitos quartos no Hotel Califórnia que pode encontrar aqui em qualquer época do ano.”
A minha mente estava perturbada pela magia daquele local, pela beleza da jovem mulher que parecia deslizar as curvas do seu vestido vermelho sobre a carpete que cobria todo o corredor que parecia não ter fim.
Mais alguns metros, ela meteu-me uma chave na mão. Sorriu e deslizou de novo até ao fim do infernizo corredor.
Um homem de estatura descomunal, trajado de fraque preto veio ter comigo junto à porta do meu quarto e segredou-me: “Boa noite… Sou o porteiro. Desculpe, mas não dê muita veracidade ao que diz a recepcionista. Ela é possuidora de uma mente depravada. Finge ser quem não é… não passa de uma estéril de espírito que se desloca de Mercedes.
Assustado, eu queria entrar no quarto, mas ele agarrou-me o braço com a enorme garra e com um sorriso sarcástico continuou: “Ela tem vários homens, a que chama de amigos, mas que não passam de prisioneiros do seu insaciável desejo. Tenha cuidado, porque fará de si o mesmo…
Eu ainda mais apavorado, tentava desprender-me da prensa que me tinha algemado.
“Ontem à noite vi os lindos homens, dançarem no jardim suados como numa noite tórrida de Verão. Alguns dançam para lembrar, alguns para esquecer.”
Soltou um riso cavernoso, afrouxou a garra e desapareceu por uma porta que se entreabriu.
Finalmente entrei no quarto. Estava atordoado. Que fazia ali?
Passei as mãos trémulas pela pedra fria que vestia as paredes e senti a sua textura rugosa, porosa, como pele.
Peguei no telefone, chamei o Gerente e disse-lhe: “Traga-me vinho por favor”. Precisava beber…
Absorto, ouvi bater à porta. Com voz de comando disse: “Está aberta”.
Um garçon com ar enfezado e franja empinada colocou a garrafa no gelo com mestria.
“Sirvo?” Indagou com uma máscara de sorriso. “Não! Obrigado…” Ainda não tinha finalizado a frase e já ele rondando nos calcanhares se encaminhava para a porta. Com a mesma máscara colocada na face disse-me colocando o queixo no ombro: “Já não tínhamos este espírito aqui desde 1969.” Não entendi.
Peguei na garrafa e atirei os ossos para o leito que me desejava. Sem respirar engoli metade do néctar que me anestesiou totalmente.
Por vezes era despertado no meio da noite com as vozes que soletravam: “Bem-vindo ao Hotel Califórnia. Um lugar encantador. Um rosto encantador.”
Algumas horas depois abri os olhos pegajosos e turvos e descortinei a mulher de vermelho, que me disse soprando ao meu ouvido: “Bom dia estrangeiro. Dormis-te bem?”
Completamente zonzo olhei pela primeira vez para o tecto espelhado. Devolveu-me uma imagem de um homem esgotado e extraviado do seu rumo.
Ela, colocou uma garrafa de rosé no gelo, acenou-me um adeus provocatório e sem mover os lábios escarlates, disse: “ Todos nós somos prisioneiros por nossa conta.” Desvairado, abri a porta do quarto, corri a passadeira infinita do corredor até chegar a uma área que destoava do cenário. Uma porta semiaberta, de cor alva e onde assomava um ar fresco que me devolveu um pouco de estimulo. A medo empurrei-a, e no centro de um quarto todo branco, jazia uma criatura linda e delicada. Nua e feminina. Em posição fetal, notavam-se as cicatrizes de lutas tatuadas na pele suave. Cabelos escuros, lisos, serpenteavam-se pelos ombros. Os olhos negros abriram-se lentamente e miraram-me, como se tivessem captado a mesma essência que eu mesmo captara ao deparar-me com tal etéreo anjo. Ao segundo olhar tomei consciência de que era realmente um anjo… um anjo que perdera as asas, pela salvação de alguém.

O dia brotou cálido. O barulho que dormiu comigo acordou em alvoroço. O meu banco amigo tinha-se calado. Estava imóvel. Mudo. Os meus olhos tinham dificuldade em olhar para o despertar da manhã.
Mas amanheceu. E nesse dia amanheceu tarde, mais tarde que de costume.
No caminho de volta para casa vi as árvores nuas como se tivessem sido despidas à pressa. Já nem pressentia a passagem dos comboios e os candeeiros da rua apagados, sozinhos ao longo do passeio, já não me cumprimentavam. Nada era o mesmo. Ninguém, mas ninguém sabia o que se tinha passado. Nenhum ser ouvira aquelas estranhas vozes que me martelavam a mente… “Bem-vindo ao Hotel Califórnia. Um lugar encantador. Um rosto encantador.”
A última coisa que me lembro, foi a corrida para a porta para fugir dali e voltar ao meu fadado destino, quando o porteiro com a sua voz sepulcral, gritou: “Nós estamos programados para receber pessoas como tu. Podes assinar a saída as vezes que quiseres, mas nunca poderás sair daqui!”

Texto inspirado no tema “Hotel Califórnia” dos Eagles.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Conversa em Braille



Perdidos no tempo, num dia de Fevereiro, qualquer um. Um apartamento nos subúrbios de Lisboa. Um apartamento qualquer, em qualquer subúrbio de Lisboa.
Uma vida. Pode ser qualquer vida… Um casal. Qualquer um…
Será que alguém que me lê, qualquer um, se identifica com esta conversa?



Ela: Nós? Nós estamos comodamente casados sem…

Ele: Ias dizer sem paixão, mas não acabaste a frase. Lançaste a ravina para me atiçares o cão do teu desespero? Mas nem esboçaste a intenção de te lançares. Porquê? Por acordo?
És uma mulher difícil, uma ponte fugida de mim. Chega-te mais, até à boca de mim e vira-te, assim… de frente.

Ela: Eu? Uma mulher difícil? Essa é boa! Sou apenas uma mulher, não um teorema! Sim, aborreço-te como um borrão de rancor, brutalmente a apartar os nossos corpos, tornando a cama num golpe de frio. Claro que te aborreço, como um hábito ou um vício aborreço-te! Aborreço-te?

Ele: Agora que a sineta da pergunta tocou estrepitosa como solavanco sucinto tenho alternativa?

Ela: Não, não tens. És tu que tens a chave, vais abrir apenas um alçapão a céu aberto.

Ele: Não, desta vez a resposta não pode continuar à espera. Não há entendimento possível entre o eu que te ama, e o eu que precisa arrancar-te da alma.

Ela: Atrever-me-ei a tanto? A confessar que não sei amar? Queres tudo, é isso? Tu queres tudo, incluindo a fúria.

Ele: E a paixão não quer tudo? Talvez o problema é que acreditas na paixão como um auto-de-fé.

Ela: Pois acredito. Se não acreditasse estaria aqui a teu lado mesmo que desentendendo-te como desentendo? Viver o que vagarosamente morre?
Sei que vives distraído de mim. Não perguntas, não inventas desculpas. Nada!

Ele: Não pergunto? Desejas-me? Ou optas ser desejada?

Ela: Basto-te como ampola de soro que te vai nutrindo quando me possuis. Não me bastam as tuas mãos de compromisso, o teu sexo de compromisso, a tua boca de compromisso.

Ele: A mim simplesmente basta-me sem paixão. A ti não. Queres o absurdo. Queres a perfeição não percebes. Mas, a perfeição não existe.
Chega-te. Cinge-me mais, assim. Para não me sentir só. Para não te sentires só. Para partilharmos cegamente o inóspito. Chega-te mais.

Ela: Mas, vale a pena?

Ele: O casamento?

Ela: Sim.

Ele: É um nada, uma raiz aberta, intacta na sua inutilidade, que me cansa. Todos estes anos. Preservá-lo é mentirmos sobre a própria mentira.

Ela: Queres que comece de novo a recordar-te? Lembras-te daquela tarde em que nós… Eu a menina que te mirava, que te beijava os teus olhos azuis? E tu, o dócil jogador de basquetebol. Claro que nunca percebeste! Eu era os teus olhos azuis.

Ele: E tu lembras-te do teu arrojado decote? Também eu soube logo, da primeira vez que te vi, que jamais voltaria a ter semelhante visão. Relembro que para além do teu rosto não me perguntei quem eras. Um nome, e logo um corpo que me tomou nos braços. Um corpo cuja história escapava à minha. Um corpo que me tomou nos braços um corpo que se deixou tomar num apartamento nessa tarde.

Ela: Chega-te. Chega-te mais. Não! Não te vires. Não acabou tudo, mas algumas coisas extinguiram-se. Por vezes ainda falo contigo dentro da minha cabeça. Invento-te ainda. Continuo a inventar-te. A esperança é algo que inventamos. Uma ficção, e uma falha. Aquela tarde foi a nossa vida exactamente como poderia ter sido.

Ele: Isso é uma acusação a mim mesmo? O que queres que te diga? Acuso-me do que há em mim de amante exilado? Não. Peço-te, isso não. Deixa-te estar assim, não me tires a possibilidade de ser náufrago. Enrola as tuas pernas nos meus braços. Não quebres a única coisa familiar nesta casa que é o nosso corpo.

Ela: O teu amor… o teu amor, que digo eu? O teu desejo por mim não é um desejo. É uma guerra desmantelada. Um protesto contra qualquer coisa. Sou a tua desilusão? Queres jogar às realidades?

Ele: Talvez. Queres que me vá embora para poderes inventá-las? Será isso que queres? Será isso o que eu quero? A esperança é o último reduto, como uma trincheira em fogo. Inventamos. Queres que te beije? A esperança é mesmo uma falha. Vou-me embora. A vida é assim e não há outra. Só reconheceria totalmente intolerável que me dissesses: desisti de tantas coisas por tua causa e não valeu a pena…

Ela: Não me pareces assim tão vulnerável mas, não! Não digo. Sei que terás saudades minhas enquanto continuares a inventar-me naquela tarde em que nós… é estranho o tempo… longos anos cavalgaram em minutos e há minutos que se alongam até parecerem horas.

Ele: Como os minutos em que crias empatia com uma personagem fictícia?

Ela: Sim? É o que eu sou para ti? E agora que começo a vestir-me, o tecido do meu vestido é a última página do livro?

Ele: Inferi no horizonte de forma demasiado rápida o recorte da ilha a que nos dirigíamos ver-te agora alisar o cabelo é um agradável interlúdio. Uma sutura de arquipélagos. Um casamento que falhou, como se o mar se partisse. Deixa-me tocar-te. Deixa-me escutar os meus dedos pedregosos ainda tocar-te.

Ela: Para me converteres em personagem de ficção de um livro em Braille? Não! Não basta estares nu para poderes amar-me!